Coordenado por Campbell, este compêndio de ensaios inclui a visão de teólogos, psiquiatras, orientólogos e especialistas em mitologia comparada. Owen Barfield, Norman Brown, Joseph Campbell, Stanley Hopper, Rollo May, David Miller, John Priest, Ira Progroff, Richard Underwood, Alan Watts e Amos Wilder compõem um painel sobre mitos, sonhos e religião nas artes, na filosofia e na vida contemporânea. Tentarei resumir o que mais me chamou a atenção.
Watts começa advertindo que mito não será tratado na sua argumentação como significado de falsidade, mas no sentido mais profundo de “um imaginário a partir do qual extraímos o sentido da vida”. O autor argumenta em prol de uma transformação necessária na mitologia ocidental. Afirma que temos vivido a imagem política do universo como dominado por um legislador essencialmente violento, o que se reproduz na organização das igrejas, com sua doutrina violenta e militar. No entanto, este tipo de doutrinação não funcionou. Seria mais adequada uma mitologia mais a ver com a ciência do Séc. XX, uma visão de um mundo mais orgânico, como um corpo ou um amplo padrão de energia inteligente com o qual nos relacionamos de outra forma: não somos súditos de um rei nem vítimas de um processo cego. “Não estamos no mundo de modo algum. Somoso mundo!” E, no final, o resultado seria um encantamento com a perfeita sabedoria e iluminação, um surpreender-se com todas as coisas, ao invés de atitudes violentas, presentes na mitologia do grande rei ou do processo cego dos ateus.
Miller entra em detalhes sobre mitos específicos que funcionam como modelo do homem moderno. Orfeu, Édipo, Prometeu, Sísifo, mas o autor acredita que há uma fascinação maior por Orestes, por representar “o homem na situação cultural contemporânea da ‘morte de Deus’”. Na medida que isto ocorre, em que o “Pai está morto” e é preciso ter lealdade à memória do pai assassinado, a mãe que representa segurança e acolhimento deve ser destruída para dedicar-nos à polis, à cidade, à política.
Outro dilema que simboliza o homem moderno é a dialética livre arbítrio e responsabilidade moral versus determinismo e vitimismo. Na terapia isto representa a dialética “fui eu” x “foi meu inconsciente”. Orestes tem a coragem de assumir: “fui eu”.
Miller ainda argumenta que o mito e o drama de Orestes são catalisadores de transformações necessárias ao homem contemporâneo. Por isso, o autor está interessado nas várias acepções do termo catarse. Indica sete imagens: 1) catarse como abertura e limpeza, como se limpa um terreno; 2) separar joio do trigo; 3) limpar, como se limpa um alimento; 4) podar, como se podam árvores; 5) esclarecimento, como aquele obtido por meio de uma análise; 6) cura por meio de aplicação de remédio; 7) purificação, por exemplo, por meio do fogo. Estas sete imagens apresentam, quando agrupados, dois modos: catarse por subtração, divisão ou separação (1-5), e catarse por adição ou complementação (6-7).
A psicologia profunda tomou as duas direções. Freud é exemplo da primeira e Jung da segunda. Isto porque as correntes da psicologia profunda contemporânea não têm a mesma visão da natureza da situação humana. Isto está claro na visão dos sonhos. Se o sonho é um sintoma de doença, esta deve ser subtraída. Se o sonho é uma imagem em busca de completude, ele é um espelho mágico que projeta a vocação humana para a realização pessoal. Na psicologia junguiana, a catarse é instrumento para “um novo ser, completando um significado pessoal que no momento está incompleto, mas que pode ser vivido como uma futura transformação, a vocação do espírito humano”. Ainda que se prefira um ou outro modo, parece que a catarse, ainda assim, é um duplo drama da psique. Basicamente trata-se de um duplo dilema, com duas teologias básicas para salvá-lo e dois dramas para purgá-lo do duplo dilema: catarse como separação e esclarecimento; catarse como unificação e completude.
Priest traz, no seu ensaio, a ideia de mito e sonho na escritura hebraica. Em geral, as experiências com sonhos do Oriente Próximo dizem respeito a três planos: sonhos como revelações divinas exigindo ou não interpretação; sonhos como representações do estado da mente, da saúde corporal e da saúde espiritual do sonhador e; sonhos proféticos de eventos vindouros.
Wilder traz a visão da escritura cristã. O autor entende que é preciso fazer um estudo dos arquétipos culturais do evangelho. Sua importância é de que os mitos bíblicos e cristãos condicionam perspectivas e atitudes contemporâneas consciente e inconscientes no mundo ocidental. O primeiro aspecto é que os sonhos nas escrituras dizem mais respeito a uma instrução que é passada, sem necessidade de um oráculo enigmático para interpretação, do que uma indicação do estado psíquico do sonhador. A interpretação de sonhos é totalmente ausente do Novo Testamento: “embora Deus permaneça oculto, ele ‘não fala ambiguamente. Ele deseja ser compreendido’”. Outro é que os poetas usam analogias como outros mitos, como o nascimento de Hórus e a “Quarta Écloga” de Virgílio, relacionados ao nascimento de Cristo. Eles (os poetas) usam arquétipos e símbolos antigos para informar a experiência presente. Então, há uma longa continuidade de mitos que vão se transformando com as mudanças culturais. Isto, entre outros aspectos, gerou uma linha de primeiros fiéis que representavam uma seita do judaísmo que continuou a guerra aos mitos, ídolos e ritos pagãos. Por outro lado, também desenvolveu um “poderoso imaginário extraído do apocalíptico judaico, do sincretismo helenístico judaico e do impulso dualístico e gnóstico no paganismo. Vemos continuidade e descontinuidade em tudo […]”.
Para Wilder, Cristo foi também um modelador de legados simbólicos estabelecendo novas prioridades, especialmente retomando os mais antigos imaginários da aliança, além de lidar muito mais fundamentalmente que seus contemporâneos com os estratos mais profundos da existência humana. Talvez, porém, o aspecto mais marcante das mitologias judaicas e cristãs esteja no fato de que os mitos mais antigos do Oriente Próximo tenham sido “historicizados”. “O novo mito e ritual de Israel era orientado para o tempo, para o nascimento da pessoa no tempo e para a promessa e obrigação no tempo. A mitologia dos ciclos naturais foi amplamente superada. O mito cristão, na verdade olhava para o fim da história, mas de tal maneira que a experiência histórica do homem ainda era válida”.
Hopper, que é teólogo e crítico literário, fala da importância dos gregos terem diferenciado a representação dos deuses, de maneira que isto criou seus primeiros poetas, ao passo em que foram estes que desenvolveram plenamente os mitos gregos. A história dos deuses é a história da crise interior dos poetas. O autor ressalta, no entanto, que vivemos uma crise de consciência mitológica também hoje, só que a atravessando ao contrário: são anti-heroicas e antimíticas, louvando o repúdio aos deuses. Buscamos uma “libertação” recusando a obediência às formas conhecidas. Para o autor, isto representa uma crise de consciência mitológica.
O autor prossegue com uma análise da crise. É concordância geral que perdemos a proteção das estruturas míticas anteriormente aceitas, com um consequente empobrecimento de símbolos. Verifica-se que a maioria dos símbolos anteriormente devotados a deuses e estruturas sagradas hoje são dominados por objetos e pela propaganda. Citando Wheelright: “Nossas ideias motivadoras atuais não são mitos, mas ideologias, carentes de significação transcendental. [… Desta forma] os homens ficam radicalmente instáveis e se agarram a qualquer mito ou pseudomito que apareça”. Hopper vê uma solidão em tais tipos de mitos. “Todos os pseudomitos são solitários porque são desprovidos do numinoso”.
Campbell, que é especialista em mitologia comparada, tem uma noção bastante esclarecedora sobre as funções da mitologia. Advoga que existam quatro funções: mística ou metafísica, cosmológica, sociológica e psicológica. Mística, na medida em que trabalha na reconciliação da consciência com as precondições da própria existência. Envolve nossa capacidade de lidar com a ideia de que tenhamos provado do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal e perdido a inocência animal. Ela ajuda a redimir a consciência de uma culpa primal. Cosmológica, na medida que formula e transmite uma imagem do universo, paralela e interagente com a ciência da época, de maneira a reconhecer as coisas como partes de um único e grande quadro sagrado. Sociológica, pois valida e mantém alguma ordem social específica associada a um código moral. Por fim, psicológica, pois molda os indivíduos conforme os objetivos e ideais de diversos grupos sociais, sustentando-os pelo curso da vida, do nascimento até a morte, tratando de dar conta de problemas psicológicos irredutíveis e muitas vezes inerente à nossa biologia.
Vale citar alguns destes fatos psicobiológicos. Ficamos muito tempo (cerca de quatorze anos) na dependência dos progenitores. Há a necessidade de voltar a psique da criança para a vida adulta, de maneira estimulativa ou impositiva. Entre humanos, “a entrada na vida adulta após a longa carreira na infância não é, como o desabrochar de uma flor, um estado de desdobramento natural de potencialidade, mas a adoção de um papel social, uma máscara ou persona, com a qual se deve identificar”. Além disso, as mitologias da humanidade precisam dar conta também da passagem pela morte. Elas simultaneamente conduzem os jovens no processo citado e apoiam os velhos de volta à natureza “até a penumbra do último portal”.
Campbell acredita que das quatro funções, as que mais radicalmente sofreram alterações com o tempo foram a segunda (cosmológica) e a terceira (sociológica). Isto por conta de uma nova visão do universo dada pela ciência e tecnologia, o que põem em risco nossas mitologias tanto do velho como do novo testamento, de épocas em que a visão “científica” do universo tinha outra conformação. Já quanto ao aspecto sociológico, vemos uma obsolescência das mitologias, especialmente pela maior mistura de povos participativos da cidadania global, onde um racismo anteriormente presente já não tem sentido. Além disso, na esfera moral, já não há mais fundações fixas. “Hoje todos os muros estão em ruínas”. Mesmo sendo as funções mais alteradas pela modernidade, a função psicológica tem sofrido alterações, também. Especialmente pelo nascimento da percepção do relativismo em todas as medidas.
Argumentando sobre uma série de desafios a uma mitologia renovada, Campbell sustenta que há que se ter sempre em mente a necessidade de uma mitologia que nos estimule a passar pelos “mal-encarados guardiões de portões” para encontrar “alegria no ponto estático deste mundo que gira, que é a vontade inspiradora de todas as coisas”. No final, o encontro do alegre espanto diante da maravilha das coisas, o presente imortal do mito.
O psicoterapeuta Ira Progroff escreve sobre o sonho desperto e o mito vivo. Para este, ambos atingem o cerne da natureza do homem. São veículos básicos para insightsintuitivos sobre a natureza última da existência. A visão que cada cultura tem dos mitos e sonhos reflete a noção subjacente da própria natureza humana. Progroff pretende fazer uma análise de sonhos e mitos à luz da psicologia profunda. “Em geral, os sonhos são aspectos da dimensão simbólica que é experimentado em termos pessoais. Quando a dimensão simbólica é percebida em termos transpessoais, em termos pertinentes a mais do que uma experiência subjetiva do indivíduo, alcançando o universal do homem, seja dormindo ou acordado, o mito está envolvido”. Para o autor, tanto o sonho como o mito são aspectos de uma única dimensão da experiência, a simbólica. Freud, como sabemos, vê que há uma relação específica do inconsciente com conteúdos reprimidos da personalidade. Os sonhos, na sua visão, são transmissores de conteúdos psíquicos recalcados. Os símbolos são substitutos de experiências originais que precisam ser recalcados pois são de difícil trato pelo consciente.
A inovação de Jung foi, neste sentido, dividir o inconsciente em dois níveis: pessoal e coletivo. O pessoal é quase de mesma concepção que a freudiana. Porém, à área denominada inconsciente coletivo Jung atribuiu sonhos e padrões simbólicos que têm uma qualidade transpessoal. O sentido de coletivo é não tanto a da experiência múltipla de um grupo, como um aspecto cultural específico, mas no sentido do que é inerentemente comum ao homem. No inconsciente coletivo ocorrem padrões de simbolismo pertencentes à humanidade como um todo. Já para a chamada psicologia orgânica, esta divisão é mais ou menos artificial e restritiva.
O autor usa o processo de crescimento de uma semente como metáfora para o crescimento humano. Ressalta que uma semente cresce determinada pelo seu objetivo teleológico inato, não determinado pelas experiências passadas do indivíduo. Isto o leva a pensar diferentemente de Freud, vendo o inconsciente não como local de experiências passadas recalcadas, mas como recipiente e veículo de experiências que ainda não aconteceram. O aspecto semente do inconsciente contém as possibilidades da experiência futura. Por isso, além das experiências passadas, os sonhos são capazes de apresentar experiências que desejam se tornar reais no futuro. O autor trata como sonhos despertos as manifestações simbólicas da vida acordada que buscam possibilidades de futuro à luz de novos e maiores contextos de significado. Na medida que as sementes de cada personalidade são executadas e realizadas, a personalidade ganha conteúdo. O autor ressalta que tais obras externas são tão simbólicas quanto os conteúdos dos sonhos durante o sono. E o transporte do sonho desperto para a obra realizada amplia e realiza o sonho.
A continuidade destas experiências é curativa pois torna inteira (interna e externamente) a personalidade, gerando crescimento interior. A cura é dialética, no vaivém entre imagem interior e obra exterior, sendo a marca da pessoa criativa. Isto conduz a pessoa para além de si mesma, ao apelo de uma dimensão espiritual da realidade, na medida que a pessoa reconhece o lugar sagrado e misterioso dentro de si, tornando-se uno com o significado interno de sua vida.
O psicoterapeuta Rollo May colabora com a coletânea abordando a importância dos aspectos demoníacos na psicoterapia. Demoníaco, ou mais especificamente “daimônico” nas palavras de May, é qualquer função natural no indivíduo com o poder de invadir a pessoa por inteiro, apossando-se de toda a personalidade. Também referido como “possessão daimônica”, é um termo histórico tradicional para psicose. A característica mais importante é que um elemento com uma função apropriada que faz parte da personalidade usurpa o poder e toma o self inteiro, levando a um comportamento desintegrador. Em sociedades primitivas, a cura se processa por meio de um confronto para chegar a um acordo com o aspecto daimônico do indivíduo. Este aspecto é convidado, por meio de uma dança frenética ou usar roupas e adereços representativos dele, entre outros modos, de maneira que o indivíduo lhe dá “boas-vindas”, enfrenta-o e aceita a identificação com ele, assimilando-o e integrando-o como parte construtiva de si mesmo. O objetivo é identificar-se com aquilo que assombra. É um aspecto rejeitado, por isso precisa ser reintegrado. É fonte de agressividade e hostilidade, mas, quando integrado, passa a ser fonte de energia e espírito que anima.
Logo, para May, a tarefa do terapeuta é mais conjurar os demônios do que fazê-los adormecer, perturbando a homeostase e viabilizando um mundo interpessoal de relação terapeuta-paciente para confrontar o desespero, o daimônico, tão completa e diretamente quanto possível. A daimônico é menos uma entidade e mais um símbolo de tendências internas que obsidiam. Se dele fugimos, torna-se poderoso pela sua reafirmação. Além disso, a terapia precisa ser voltada para além do experienciar, incluindo uma mudança de conceitos, símbolos e mitos. “Eu só serei capaz de destilar do trauma da doença a oportunidade de uma nova visão interna sobre mim mesmo, e de auto-realização na vida, se a doença mudar meu mito pessoal. […] O daimônico empurra o indivíduo para o logos”.
Todo este processo deve incluir nomear os demônios. O nome confere poder sobre, pois ajuda o paciente a se sentir aliado a um “grande movimento científico” e que ele não está só. “Nomear um problema equivale ao terapeuta dizer: ‘Seu problema tem um nome, tem causas, você pode ficar de fora e olhar para ele’”.

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