Uma resenha de Feinstein, David, Krippner, Stanley. Mitologia Pessoal – A Psicologia Evolutiva do Self. São Paulo, Cultrix, 1992.

Amig@s: este foi o livro que mais me tocou e transformou em 2015. Tive a sorte de ter chegado a este livro, lido ele, praticado e mais, ter encontrado um dos autores. Recomendo, é sensacional.
Esta obra dos psicólogos renomados David Feinstein e Stanley Krippner trata de como descobrir a própria história interior encenada diariamente e recriá-la por meio de rituais, sonhos e imaginação. É a apropriação por cada um de nós de nossa própria mitologia pessoal. O propósito é guiar a nós, leitores, por nossa mitologia para que possamos compreendê-la e a nós mesmos, e transformá-la numa poderosa ferramenta de autotransformação. Oferece um conjunto integrado de princípios e procedimentos psicológicos com inúmeros exercícios, tendo feito pessoalmente todos da maneira mais completa que me foi possível. Ao longo desta postagem compartilho alguns aprendizados e resumos. Como mencionam os autores, pude libertar-me de mitos de infância e da sociedade que já não mais serviam e um novo mito surgiu para influenciar mais positivamente meus padrões.
Trata-se de um programa em cinco estágios:

  1. Como reconhecer quando um mito-guia deixa de ser um aliado
  2. Análise das raízes do conflito mítico
  3. Como conceber uma visão mítica unificadora
  4. Da visão à realização
  5. Como criar uma mitologia renovada no dia-a-dia
A principal contribuição é facilitar a nós, como indivíduos, o reconhecimento da origem das dificuldades, assumindo a responsabilidade pelo próprio processo de cura e de bem-estar. Perceber que se vive de forma mítica é compreender a vida como um drama em evolução, cujo significado vai além dos interesses diários. A mitologia pessoal orienta a vida de forma silenciosa, conferindo significado a toda situação e influenciando atitudes. “A arte de viver é essencialmente uma evolução do poder de escolha interna” (p.16), de forma que a análise da mitologia pessoal fortalece nossa habilidade para tomar decisões mais criativas e autorizadas.
Mitos não são lendas ou falsidades, neste contexto, mas modelos através dos quais nós, seres humanos, codificamos e organizamos percepções, sentimentos, pensamentos e atitudes. A mitologia pessoal origina-se do nosso próprio ser e da cultura onde vivemos. O trabalho dos autores é fundamentado, além do conceito acima, nas seguintes premissas:

  1. A produção de mitos pessoais ou coletivos constitui-se num dos mais fundamentais mecanismos psicológicos.
  2. Em função do individualismo, povos de culturas contemporâneas são mais capazes de elaborar e pensar sobre mitologias pessoais do que em qualquer período anterior da história. Logo, isto é mais premente hoje do que em qualquer outra época.
  3. Ao compreender os princípios que governam a mitologia, o indivíduo se torna menos limitado pelos mitos infantis e da cultura, e começa a influenciar mais os padrões de sua vida.

1. A Mitologia num Contexto Contemporâneo

Feinstein
A mitologia enquanto caminho interior mais rico e um panorama espiritual mais aprimorado tem sido cada vez mais a tônica na literatura, como podem atestar as obras de Robert Bly, Jean Shinoda Bolen, Joseph Campbell, Robert Johnson, Sam Keen, Rolo May, Arnold Mindell, entre vários outros. Todos partem da ideia de que com a consciência sobre mitologia um indivíduo e um grupo podem desenvolver-se de forma mais valiosa, de maneira que a alteração de um mito-guia provoca mudanças decisivas nas percepções, sentimentos e comportamento.
Notam-se mudanças das culturas antigas para as modernas. Espíritos e divindades praticamente desapareceram e, em seu lugar, abundam heróis e heroínas mortais, aparecendo e desaparecendo repentinamente. Mitos afloram e são transmitidos em todos locais: palcos, telas e canções; educação, religião e política; literatura, arte e arquitetura; publicidade, moda e design. Sua vida média é cada vez mais curta. A história tem avançado mais rapidamente, e o mesmo acontece com a necessidade de facilitar a atualização dos mitos que nos guiam.
Mas seu conteúdo é o mais digno de nota: a mitologia ocidental moderna tem sido ditada pela “obsessão erótica pela máquina”. Isto quer dizer que as sensações, a intuição, os sentimentos, as fêmeas e a natureza devem ser controladas e excluídas das posições de poder. O que são valorizados são leis de mercado, conhecimento e poder patriarcal.
Outro aspecto é que a mitologia moderna aponta uma necessidade maior de investida no universo mais profundo da psique. “Como você deixou de confiar nos mitos passados da sociedade em que vive, é obrigado a estabelecer um maior grau de autoconfiança”. Então, os autores buscam na mitologia pessoal os meios para adquirir este grau. Isto faz sentido, pois o mito é a linguagem que mais se aproxima do funcionamento da psique. Adiciona-se a isto o fato de que há ansiedade e desorientação generalizados, na medida em que as mitologias em vigor na cultura contemporânea estão nos levando à destruição. Mais necessário é desenvolver mitologias pessoais de qualidade.
De acordo com as instruções da obra, as mudanças oferecidas pelo método da mitologia pessoal são: 1) identificar mitos obsoletos ou improdutivos, inconscientes e atuantes; 2) começar a revê-los; 3) revisar estes mitos. Tudo é feito por meio de: a) rituais pessoais – atos simbólicos que celebram, revivenciam ou comemoram um evento ou processo da vida do indivíduo ou da comunidade; b) diário pessoal, para registrar as descobertas e o crescimento; c) instruções de imaginação conduzida; d) trabalho com sonhos. Os mitos mais fundamentais são percebidos em sonhos e outros produtos do inconsciente.

2. Mitos

Krippner
Por meio dos mitos pessoais, interpretamos o passado, compreendemos o presente e nos orientamos para o futuro. Eles apontam questões de identidade (“quem sou eu?”), de direção (“para onde vou?”) e de propósito (“por que estou aqui?”). Além disso, os mitos pessoais estão carregados de esperanças e desilusões de gerações anteriores. Na família nascem muitos deles. As crianças têm uma variedade de experiências e ela acaba dependendo de modelos exteriores para ajudá-la a organizar seu interior. Talvez a criança tentará imitar heróis pelos quais se sentir atraída e, uma vez incorporadas imagens de modelos, ela passa a ser controlada por estas imagens. A gama de modelos na cultura contemporânea é vasta, mas tende a colocar em foco insistentemente figuras mais dramáticas e arrogantes.
Com o desenvolvimento das imagens, o mito pessoal acaba tornando-se uma constelação de crenças, sentimentos e imagens organizadas em torno de temas centrais. No final das contas, a mitologia pessoal pode ser considerada um sistema de mitos pessoais complementares e contraditórios que organiza o sentido de realidade e orienta os atos de uma pessoa. Porém, a compreensão dos princípios por meio dos quais a mitologia pessoal funciona é que dá condições de participar conscientemente no desenvolvimento dela. Os psicólogos chamam àquela constelação de padrões de complexos.
Uma das qualidades de uma mitologia pessoal vital é sua capacidade de mudança. Apesar da cultura e os outros oferecerem opções, ela é pessoal e intransferível – Campbell descreve o dilema: “Sempre que um cavaleiro do Graal tentava seguir o caminho de outro, ele se perdia. Onde existe um caminho ou trilha, existem as pegadas de outrem. Cada um de nós tem de encontrar o próprio caminho… ninguém pode lhe oferecer uma mitologia” (p. 42).
Houve um tempo que o desenvolvimento da mitologia tinha nos sábios, xamãs e profetas a figura central. Agora isto é uma prerrogativa de todos e oportunidade de empreender a jornada interior, ainda mais extraordinária do que jamais antes, utilizando capacidades racionais para refletir sobre “o milagre da sua mitologia em evolução” (p. 43).
A evolução da mitologia interior surge a partir de conflitos entre estruturas míticas existentes e novas experiências. Ambas interagem em retroalimentação por interações entre mitos predominantes e mitos emergentes, de maneira dialética. Também respectivamente chamados mito e contramito, buscam uma saída evolutiva dialética em uma síntese na forma de novos mitos mais atualizados que incorporam elementos essenciais de cada um, de maneira realista e inspirada. O conflito é comum nas áreas ou momentos de vida em que há maior insatisfação ou dificuldades.
O programa descrito nesta obra visa ensinar a participar de maneira mais eficiente da evolução da própria mitologia. Não visa controlar ou compreender toda a mitologia pessoal. Ela jamais poderá ser apreendida apenas pelo intelecto. Apoiado na psicologia profunda, o objetivo último é harmonizar o ego consciente com as forças mais profundas que o envolvem. Mudar o mito obsoleto é a proposta, ao invés de desperdiçar energia em autocondenação.
A grande abertura proposta pelos autores trata do encontro com o xamã interior. Implica desenvolver em si habilidade para tornar-se agente consciente da própria evolução. O xamã interior é uma figura guia para a passagem oculta e exuberante para o inconsciente. O xamã interior, à luz dos xamãs reais, tem três responsabilidades: 1) manter a relação entre a consciência de vigília e a realidade oculta de “Outros Mundos”; 2) produzir criativa e eficientemente novas experiências para harmonizar mitos com a realidade comum; 3) orientar a evolução da mitologia. O xamã interior também pode ser chamado de “ego observador” ou “testemunha interior”.

3. Primeiro Estágio: Reconhecer um Mito Guia Obsoleto

Primeiro há que se reconhecer os temas clássicos e suas influências e verdades sobre a caminhada pessoal. Jornadas heroicas como a de Ulisses, a descida de Perséfone aos infernos, a busca do Santo Graal, o conto de Eros e Psique ou os diálogos de Krishna e Arjuna falam de dilemas modernos. O mesmo vale para os paralelos entre os primeiros estágios da evolução da humanidade, tornados mitos como no exemplo da história do Gênese, e o desenvolvimento pessoal da criança, interpretada como uma “queda” psicológica da inocência.
Meu próprio escudo pessoal
Neste estágio os autores sugerem ao leitor elaborar os seguintes rituais: 1) Seu “Paraíso” Perdido; 2) A Criação do Escudo Pessoal, de cinco setores: a) paraíso; b) paraíso perdido; c) visão do paraíso reconquistado; d) minha busca e; e) uma visão renovada; 3) Como Explorar o Significado do Seu Escudo; 4) Seu Escudo como Autobiografia; 5) Avaliação dos Conflitos; 6) Encontrar um Símbolo para Seu Conflito; 7) Como Encontrar as Raízes do Conflito Mítico do seu Passado; além do trabalho com sonhos: 1) “A Minha Busca”; 2) Um conflito a Ser Solucionado.

4. Segundo Estágio: Análise das Raízes do Conflito Mítico

Trata-se de um mergulhar na escuridão e na dor e encontrar a verdade das próprias percepções para emergir identificando a realidade de um ponto de vista renovado. Especificamente é distinguir na consciência o antigo mito e o contramito que originam o conflito identificado no primeiro estágio. Há aqui uma busca pela percepção das forças pessoais, familiares e culturais que moldaram o velho mito em busca de uma morte psicológica para ele e do seu luto. Começa-se a reconhecer os problemas gerados pelo velho mito. Aqui também se abre espaço para o reconhecimento do surgimento de um contramito.
Neste estágio os autores sugerem ao leitor elaborar os seguintes rituais: 1) Primeira Parte do Seu Conto de Fadas; 2) A Cura de uma Ferida Antiga; 3) Como Encontrar as Raízes da Renovação Mítica no Seu Passado; 4) Segunda Parte do Seu Conto de Fadas; 5) A Metáfora Física do Seu Conflito; além do trabalho com sonhos: 1) Uma Imagem Renovada do Paraíso Reconquistado.

5. Terceiro Estágio: Como Conceber uma Visão Mítica Unificadora

“Na psicologia profunda, a tensão entre aspectos rivais da psique é vista como característica natural e inevitável do desenvolvimento da personalidade. Essa tensão estimula as energias da psique e regula a personalidade” (p. 110). O objetivo é encontrar uma transição mais consciente em busca de mitos-guias mais flexíveis e eficazes a partir da dialética: velho mito como tese, contramito como antítese e novo mito como síntese – uma resolução dos conflitos entre os dois. Há uma transição consciente, em que o novo mito ainda é limitado de formas ainda não encontradas, e o velho ainda se agarra em padrões familiares.
Neste estágio os autores sugerem ao leitor elaborar os seguintes rituais: 1) Gráfico dos Efeitos de Mitos Conflitantes; 2) Diálogo com Seus Mitos Conflitantes; 3) Como Transformar Obstáculos em Oportunidades; 4) Uma Fantasia de Solução; 5) Uma Metáfora Física da Resolução; além do trabalho com sonhos: 1) Identificação dos Obstáculos à Solução; 2) Um Sonho de Integração.

6. Quarto Estágio: da Visão à Realização

Mitos obsoletos o afastam do “caminho com coração”. Mas a dor resultante do conflito mostra o sinal da mudança necessária e oportuna. Aqui ocorre a busca por uma única visão mítica que aponte para uma direção nova, mais satisfatória, para possibilidades mais elevadas.
Neste estágio os autores sugerem ao leitor elaborar os seguintes rituais: 1) A Ampliação do Diálogo com o Apoio do Seu Xamã; 2) Seu Objeto de Poder; 3) Terceira Parte do Seu Conto de Fadas; 4) Sequência do Conto de Fadas; 5) Buscando Confirmação nos “Poderes que São”; 6) Completando Seu Escudo; além do trabalho com sonhos: 1) Sonhando com Seu Novo Mito; 2) A Busca de Confirmação nos Sonhos.

7. Quinto Estágio: Como Criar uma Mitologia Renovada no Dia-a-dia

Aqui ocorre a escolha do caminho usando todas as forças, implementando mudanças claramente desejáveis. Cuidado: o velho mito pode persistir com tenacidade! Há então um enfoque interior e exterior, tanto envolvendo mudanças adicionais nas imagens e no que você diz a si mesmo em experiências diárias, quanto mudanças práticas em hábitos e prioridades, muitas vezes com a ajuda de outros.
Neste estágio os autores sugerem ao leitor elaborar os seguintes rituais: 1) Invocando o Novo Mito em Seu “Corpo Sutil’; 2) O Cultivo de Afirmações Sustentadoras do Novo Mito; 3) Um Cerimonial para o Novo Mito (envolvendo um ritual pessoal diário e um ritual público); 4) Criação de uma Ecologia que Sustente o Novo Mito; 5) Um Contrato para Viver a Nova Mitologia; 6) Criando um Circuito Completo com a Evolução da Sua Mitologia; além do trabalho com sonhos: 1) O Próximo Passo no Sonho.

8. Sua Mitologia em Evolução

A mitologia pessoal é resultado de quatro fontes interagentes: a biologia, a cultura, a história pessoal e experiências transcendentes. Os autores acreditam na hipótese de que o processo mítico tenha algum tipo de codificação neurobiológica, uma estrutura profunda como no caso da linguagem, pois revelam-se por uma lógica universal que, de acordo com Lévi-Strauss, está “literalmente incrustrada na ‘estrutura mental’”. Carl Jung foi o mais proeminente elaborador das teorias a respeito da interação psique mitológica, cultura e arcabouços humanos arcaicos profundos – o chamado inconsciente coletivo. Campbell é outro exemplo das relações culturais com a mitologia pessoal. Em especial, alguns autores como Hall ou os próprios Feinstein e Krippner argumentam sobre uma necessidade de gradual e relativa separação do indivíduo das “garras da cultura inconsciente”. Ajuda nisso o conhecimento de outras culturas para melhor conhecer a nossa e transcendê-la.
Princípios da mitologia em evolução:

  1. Os mitos pessoais existem dentro de uma ecologia psicológica de mutação e seleção; as mais aptas evoluem constantemente. O crescimento psicológico exige mudança para uma mitologia mais avançada.
  2. Conflitos pessoais são marcos naturais dos períodos de transição.
  3. De um lado do conflito está o mito limitante, mas que cumpriu objetivos positivos no passado.
  4. Do outro lado há um contramito emergente, expansor da personalidade, eficaz em áreas que o velho mito o limita.
  5. Este conflito progredirá para um novo mito integrador.
  6. Conflitos não solucionados ressurgem, interferindo na evolução.
  7. A harmonização de um novo mito, associado a novas atitudes, objetivos e estilos de vida, é fundamental para evolução.
Por fim, os autores argumentam sobre uma necessária transição da mitologia pessoal para o compartilhamento de mitologias renovadas em comunidades, incluindo a comunidade global. Isto envolve rever nossa jornada do herói moderno mediante os desafios de sustentação da vida humana, mais em acordo com nossos tempos individualistas e racionais: “O tema mítico ignorado em nossa era, qual seja o da jornada solitária do herói levou-nos para um caminho que só pode ser interceptado por heróis que cooperam no respeito ao planeta e ao semelhante” (p. 219).

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